A FEDERAÇÃO É COMUNISTA?
Eduardo Pacheco Freitas
Historiador
O questionamento presente no
título desse texto é, frequentemente, objeto de debates entre os fãs de Star
Trek ou até mesmo de ficção científica em geral. Vale lembrar que Star Trek é
uma série diferente das outras produções do mesmo gênero, já que nos apresenta
um futuro utópico em vez dos onipresentes futuros distópicos do nicho da ficção
científica. Por isso mesmo, é natural que surjam especulações sobre a natureza
dos sistemas políticos, econômicos e sociais representados pela Federação Unida
de Planetas.
Afinal de contas, se a distopia é
nitidamente derivada do horror e do colapso final capitalista, a utopia seria a
sua antítese comunista.
Antes de procurarmos responder
diretamente à pergunta-título, é necessário considerarmos que Star Trek é um
produto da grande e poderosa indústria cultural estadunidense. Como tal, tem
como objetivo o lucro. Tem como finalidade ser vendida no mercado interno e
externo, gerando também toda uma cadeia rentável de produtos derivados, como
quadrinhos, livros, roupas, colecionáveis, grandes eventos, cruzeiros etc. etc.
etc. É um negócio lucrativo para os detentores da marca Star Trek e também para
uma infinidade de outros empresários em todo o mundo.
É possível falarmos ainda assim
de uma sociedade comunista que seria a base das atividades da Frota Estelar e
portanto da maior parte dos personagens vistos na tela? É possível que, por
trás de um produto típico da indústria cultural capitalista, ainda assim esteja
escondida (ou nem tanto assim) uma ética comunista?
Nem tanto ao céu (ou espaço), nem
tanto à terra.
Star Trek, por ser produto de uma
grande empresa, sempre carregará traços maiores ou menores da sua filosofia.
Mas a empresa não faz nada sozinha. Quem cria Star Trek são os trabalhadores
intelectuais e os técnicos. Dentre os principais trabalhadores por trás do
sucesso de Star Trek estão os roteiristas. Eles estão no centro da produção. E,
como temos visto ao longo de cinco décadas, eles são em geral bastante
críticos.
É a crítica social desenvolvida
por gerações de roteiristas envolvidos com Star Trek que formatou a ficcional
Federação Unida de Planetas e os seus valores de igualdade, liberdade,
tolerância, cooperação e paz.
É a insatisfação desses
roteiristas com o presente - com o ethos capitalista e imperialista - que os
levou a criar, olhando para o futuro, uma das mais importantes marcas de Star
Trek: a crítica ao capitalismo e o sonho de uma sociedade pós-capitalista.
Ambas estão amalgamadas na Federação.
Gene Roddenberry foi o primeiro a
concebê-la como uma sociedade onde os seres humanos, convivendo com diversas
espécies alienígenas (representações da diversidade étnica e cultural da humanidade)
superaram as primitivas formações sociais baseadas na acumulação de riqueza.
Podemos dizer que Roddenberry era um comunista? Não. Mas seu sonho aproxima-se
de maneira impressionante ao comunismo. Na Federação Unida de Planetas os
valores principais giram em torno da cooperação e do conhecimento. O comandante
Benjamin Sisko já elucidava essa questão logo no primeiro episódio de Deep
Space Nine:
A coisa mais importante a entender sobre
os seres humanos é que o desconhecido define nossa existência. Estamos
constantemente procurando, não apenas respostas a nossas perguntas, mas novas
perguntas. Somos exploradores. Exploramos nossas vidas dia a dia , e
exploramos a galáxia, tentando descobrir as fronteiras de nosso conhecimento, e
é por isso que estou aqui — não para conquistá-los com armas ou ideias, mas
para coexistir… e aprender (DS9, Emissary, 1993).
Além disso, a Federação se
distingue por aquilo que chamaríamos dentro do movimento comunista de
internacionalismo. Ou seja, a busca por uma grande união de povos que têm como
objetivo o bem comum da humanidade. Sem exploração entre homens e nações. “Uma
terra sem amos: a Internacional”, descreve poeticamente o hino dos comunistas.
Porém, o comunista sabe que o internacionalismo não é sinônimo de
homogeneização cultural. Ele convive perfeitamente com as identidades nacionais,
que jamais são suprimidas em benefício de um ideal abstrato de comunismo.
Domenico Losurdo, apoiado em Gramsci, esclarece a questão: “O internacionalismo
não tem nada a ver com o desconhecimento das peculiaridades e identidades
nacionais que continuarão a subsistir muito depois da queda do capitalismo”
(LOSURDO, 2004, p. 121–122).
Não é isso a Federação? Mas
alguns críticos, pensando nesta, que claramente apresenta formas estatais,
argumentarão: “na sociedade comunista o Estado deixa de existir”.
Esta é uma visão utópica e
messiânica do comunismo. Ela remete ao fim da história e de toda e qualquer
contradição que adviria do mundo comunista. Com o término das contradições
capitalistas novas contradições apareceriam, sem dúvida menos intensas e cruéis
como as atuais. Mas ainda existiriam. Há a ideia de que o Estado surge na
sociedade civil e se opõe a esta, sendo, por fim, reabsorvido por essa no
comunismo. Gramsci coloca em discussão a tese de extinção do Estado apontando
que a própria sociedade civil é uma forma de Estado.
Além disso, é lícito pensar que
com o desenvolvimento da sociedade comunista a função repressora do Estado
tende a desaparecer dando lugar às funções econômicas e culturais, que percebem
enorme progresso. Obviamente, alguma forma de coerção, ainda que mínima,
continuará existindo.
Não é exatamente essa forma de
Estado que encontramos representada na Federação Unida de Planetas? Ela não é
uma associação de centenas de civilizações, com diferenças culturais
consideráveis, porém unidas em um propósito de cooperação e paz? Uma reunião de
povos sob a mesma bandeira, sob um governo central (Conselho da Federação)
porém cada um deles mantendo sua própria língua, cultura, práticas ancestrais
etc.?
Esta total liberdade cultural que
vigora sob uma única bandeira pode ser verificada tanto em nível galáctico
(basta pensar em vulcanos, humanos, andorianos, telaritas etc.) quanto na
Terra, quando vemos Joseph Sisko com sua culinária creole ou Picard
produzindo seu vinho tipicamente francês.
Ao mesmo tempo não constatamos
que o Estado conhecido como Federação Unida de Planetas deixa de lado a
repressão e investe na aquisição de conhecimento e no compartilhamento de suas
descobertas?
Evidentemente, há o caso dos
Maquis, que possuem uma causa justa, contra o imperialismo cardassiano
associado momentaneamente à Federação e são reprimidos por esta última. Mas não
é essa uma exceção (embora vergonhosa) e que cabe perfeitamente nas
contradições que ainda não cessaram e no processo de longa duração de implementação
de uma sociedade não opressiva? De qualquer forma, lembremos que a coerção
ainda existirá - mesmo que diminuta - como de fato existe na Federação.
Como visto, ao perguntarmos se a
Federação é uma sociedade comunista encontramos muitas dificuldades pelo caminho.
Desconsiderando os fãs incapazes de compreender que, no mínimo, a Federação
assume a forma de uma sociedade pós-capitalista, alguns comunistas — em geral
aqueles que atacam as revoluções russa, chinesa, vietnamita, coreana e
cubana — entenderão que a resposta é não.
Afinal, para eles, não é possível
o comunismo com Estado e o comunismo nacionalista, que preserva e sustenta a
cultura nacional, sobretudo frente ao imperialismo.
Já para um outro tipo de
comunista, dentre os quais me incluo, a resposta poderá ser afirmativa. A
Federação é uma forma de Estado que promove a igualdade e a liberdade como
valores coetâneos e complementares, existindo como ente econômico, cultural e
político pertencente a diversos povos associados. Embora nela ainda exista um
mínimo de coerção, não há mais espaço para a opressão de classe ou contra
identidades nacionais, elementos indissociáveis e indispensáveis para a
construção do comunismo.
Referência
LOSURDO, Domenico. Fuga da história? A revolução russa e a
revolução chinesa vistas de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
***
Eduardo Pacheco Freitas é professor e historiador. Apresenta o canal Apenas um Trekker.
É autor de Star Trek: Utopia e Crítica Social (2019) e O’Brien deve sofrer! (2021).
Os livros podem ser encontrados no link a
seguir: https://linktr.ee/livrosstartrek
Eduardo Pacheco Freitas
Muito dez!!!!Parabéns , como é bom ler textos do eduardo!
ResponderExcluirGrande presença do Eduardo.
ExcluirQuando o cara sabe escrever e sabe do que está escrevendo, está ai o resultado.